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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Pobreza não tem raça: Modelo de política racial americano não serve ao Brasil

O tema das Ações Afirmativas desperta muitos debates e é alvo de discussões nem sempre pautadas pela racionalidade e pela cientificidade. Difícil se torna, então, falar sobre um tema quando este já vem impregnado de diversas pré-compreensões, acompanhadas, no mais das vezes, por uma postura passional e extremista. Com este trabalho, propõe-se abandonar as posturas já assumidas sobre o assunto, para a partir daí realizar uma releitura, desta feita interligando áreas de conhecimento distintas, como são o Direito, a História e a Sociologia.

O trabalho pretende analisar se existe de fato uma real necessidade em se adotar políticas públicas afirmativas no Brasil em que a raça esteja entre um dos fatores a ser considerados, ou, então, em que funcione como o critério exclusivo. Ou se, do contrário, essa discussão nos é estranha e apenas decorre de um deslumbramento em relação ao modelo adotado alhures, muitas vezes esquecendo as diferenças estruturais entre o país que inspirou a criação das políticas positivas — Estados Unidos — e aquele em que se pretende adotá-las — Brasil.

Para tanto, faz-se mister estudar o contexto histórico e sociológico em que as ações afirmativas foram criadas e se desenvolveram. Daí a razão pela qual faremos uma abordagem comparativa entre os Estados Unidos, país onde o programa teve início, e o Brasil. Isto nos leva, entretanto, ao estudo e à análise de um passado longínquo, que não interessa diretamente ao assunto, mas que se faz imprescindível para reconstituir o quadro das relações raciais brasileiras e norte-americanas.

O estudo enfocará de maneira prioritária as ações afirmativas destinadas aos negros, porque foram para estes que originariamente tais medidas foram criadas nos Estados Unidos. A ampliação dos programas positivos para as outras minorias, como as mulheres, os índios, os deficientes físicos e os imigrantes, decorreu de justificativas diferentes das que embasaram a criação dos programas para os negros e que fogem ao trabalho que nos propomos.

Com a quantidade de livros publicados sobre o tema, principalmente nos Estados Unidos, poder-se-ia acreditar que o assunto estaria praticamente esgotado, e que restava aos pesquisadores brasileiros fazer uma ligeira adaptação do material já publicado — como de fato é o que vem sendo feito até agora. Entretanto, a justificativa para uma nova abordagem afigura-se-nos assustadoramente fácil, porque a necessidade de uma nova perspectiva, na qual se enfoque a história das relações raciais nos dois países paradigmas desse estudo, Brasil e Estados Unidos, parece-nos deveras óbvia, quando se trata de ações afirmativas. Entretanto, nada ainda havia sido escrito sob tal enfoque, especialmente no meio jurídico. Há asserções soltas e sugestivas de que o contexto brasileiro difere do norte-americano, sem que os autores de tais afirmativas procedam, contudo, à análise de quão profundas são essas diferenças. A quase totalidade dos muitos artigos e poucos livros escritos no Brasil não renova os argumentos[1] e analisa os programas positivos como se estes fossem os resultados de uma evolução lógica da concretização do princípio da igualdade, partindo do Estado Liberal ao surgimento do Welfare State — Estado do bem-estar social. Ora, pesquisar é trazer à tona algo novo, questionando as posições tidas por consolidadas. Este estudo propõe-se a fazer cócegas na inteligência do leitor, convidando-o a participar de uma nova visão dos fatos, de uma forma diferente do que vem sendo escrito até então.

Os defensores das ações afirmativas no Brasil tomam por base o modelo político instituído nos Estados Unidos, como se este fosse impermeável e acima de qualquer tipo de crítica. Argumentam, de forma enfadonha e repetitiva, que os norte-americanos encaram o problema e que no Brasil o racismo é muito pior, porque camuflado, ocultado, escondido. Viver-se-ia aqui uma hipocrisia racial, baseada em um mito, o da democracia racial, de modo que só teríamos a aprender com os americanos do norte. Curioso é perceber que, ao tentar promover a resolução dos problemas brasileiros, grande parte da militância pró-ações afirmativas finge desconhecer a história do próprio país e acata, de forma passiva e subserviente, os métodos e mecanismos de resolução para a problemática racial pensados alhures.

As ações afirmativas surgiram e prosperaram nos Estados Unidos, país cujo contexto histórico difere em muito do brasileiro. Para proceder a um estudo sério acerca do assunto, vários tópicos não podem fugir à análise do pesquisador, dentre os quais o exame de como se desenvolveram as relações entre brancos e negros[2] nos Estados Unidos antes da imposição das ações afirmativas, de que maneira o Estado lidava com essas manifestações inter-raciais, se havia uma política legal a dar suporte à discriminação, de que modo a Suprema Corte atuava, se as decisões buscavam impedir ou fomentar o ódio racial. Tudo isso deve ser analisado de uma maneira comparativa com o Brasil, para que possamos avaliar os riscos quanto à adoção de medidas afirmativas e o grau de eficácia do instituto.

Por outro lado, pretende-se realizar um estudo comparativo sobre como se desenvolveram as relações raciais nos dois países, desde o início da colonização. Nesse sentido, ainda que de maneira resumida, serão analisadas as características dos povos colonizadores – Portugal e Inglaterra –, a forma como se originou o povoamento, o motivo do emprego da mão-de-obra escrava negra, a existência ou não de miscigenação entre as raças, as causas da abolição, o modo pelo o qual se desenvolveram as relações raciais após a extinção do trabalho escravo. Com isso, observar-se-ão as conseqüências originadas dos diferentes processos históricos, para, alfim, proceder-se às conclusões sobre a necessidade de medidas afirmativas para os negros no Brasil.

Antecedentes históricos. As diferentes formas de colonização efetuadas no Brasil e nos Estados Unidos. O surgimento das ações afirmativas.

As diferentes formas de colonização realizadas no Brasil e nos Estados Unidos geraram conseqüências importantes sobre como se desenvolveram as relações raciais em cada um dos países. A colonização realizada por Portugal nos fez herdar características já presentes naquele reino, em todos os aspectos da vida social. Não havia em Portugal excedente populacional apto a promover a colonização no Brasil. Quando esta foi finalmente efetuada, realizou-se apenas por homens brancos, já que os portugueses não trouxeram consigo as famílias. Esse fato deu ensejo à relativa falta de mulheres brancas na colônia, e conseqüente caldeamento dos portugueses com as índias e com as escravas negras. Essa conjunção de raças favoreceu a formação de um povo altamente miscigenado, como é o brasileiro[3].

Nos Estados Unidos, por sua vez, a colonização feita por ingleses foi no intuito de povoar a terra, originando núcleos familiares. À época, mudanças estruturais haviam ocorrido na Inglaterra. O estabelecimento das incipientes manufaturas teve como conseqüência o cercamento dos campos e a expulsão dos camponeses. Tal fato, aliado aos conflitos religiosos — período da contra-reforma católica à religião protestante — fez com que houvesse uma multiplicidade de pessoas ávidas a sair do país. O sucesso de tal empreitada colonizadora pode ser explicado ainda por outros fatores, como a glorificação da ética do trabalho e a recompensa ao esforço individual, típicas do protestantismo.

As condições em que se desenvolveu a colonização nos Estados Unidos geram uma série de ilações no que tange à questão racial. Com efeito, a colonização efetuada por famílias fez com que não houvesse nos Estados Unidos uma forte miscigenação entre as raças, da maneira como foi conhecida no Brasil — não havia carência de mulheres brancas. Por sua vez, o estabelecimento da mão-de-obra escrava negra alhures somente teve início efetivo a partir do século XVIII; até então, contava-se com o trabalho dos trabalhadores temporários brancos. Ademais, a religião protestante admitia o divórcio, de modo que às mulheres era garantido o direito de se divorciarem dos maridos que, eventualmente, praticassem a infidelidade com as negras, o que dificultou a miscigenação.

Outro fator histórico que traz conseqüências para as relações raciais contemporâneas é o fato de os portugueses já serem acostumados com a presença dos negros desde antes do descobrimento do Brasil. Portugal era um país altamente miscigenado antes mesmo do início da colonização brasileira. No entanto, o mesmo não pode ser afirmado no que tange à Inglaterra. A despeito de a Grã-Bretanha ter desempenhado papel de destaque para fazer ressurgir a escravidão e o tráfico de escravos, devido aos vultosos ganhos comerciais que se originavam com a magnífica frota de navios negreiros saídos principalmente de Liverpool, o trabalho servil nunca fora considerado mão-de-obra efetiva para os ingleses, de modo que a Inglaterra não conheceu a miscigenação tal como já experimentara os países Ibéricos. Isso explicará, em parte, porque nos Estados Unidos a miscigenação foi largamente desestimulada.

Por outro lado, a plasticidade do povo português, acostumado a oito séculos de dominação moura, fez gerar em terras tupiniquins uma estrutura social extremamente maleável, o que garantiu a alguns negros, mesmo na época do Brasil Colônia ou do Império[4], em que vigente o sistema escravocrata, a possibilidade de alcançar postos de destaque. Deste modo, o negro livre no Brasil possuía status social definido, antes mesmo da abolição da escravatura.

Outra distinção relevante decorre do modo segundo o qual se lidou com a liberdade dos negros antes da abolição. No Brasil, a possibilidade de alforria, além de em alguns casos derivar de expressa disposição normativa, poderia também ser obtida por determinação dos senhores, por disposições de última vontade, ou então pela compra da liberdade pelo próprio escravo. Já no contexto norte-americano, houve a edição contínua de leis visando a evitar a existência de negros livres nos estados escravistas, o que decerto dificultou a interação racial[5].

Com efeito, ainda que as limitações à aquisição da liberdade antes da abolição da escravatura não fossem absolutas nos Estados Unidos, serviram para impedir a formação de uma numerosa classe de negros livres, o que trouxe conseqüências graves para o desenvolvimento das relações entre as raças naquela sociedade. Nos anos imediatamente anteriores à abolição da escravatura norte-americana, apenas 12,5% dos negros eram livres. Já no Brasil, a relativa facilidade para aquisição da alforria fez com que os brancos já estivessem acostumados à presença dos negros livres na sociedade antes da abolição, de modo que os escravos, quando libertos, não encontraram uma resistência social organizada. Calcula-se que os escravos constituíam apenas 5% da totalidade da população brasileira em 1887, sendo que a esmagadora maioria dos negros, 90%, já era livre.

A par desse aspecto, é importante destacar que no Brasil a abolição da escravatura não foi precedida de guerras nem conflitos. Do contrário, foi permeada por sentimentos de exaltação nacionalista. Decretou-se no país feriado por cinco dias e a Princesa Isabel foi agraciada com o título de “A Redentora”. Já nos Estados Unidos, a abolição da escravatura foi precedida da mais violenta Guerra Civil que se tem notícia, que resultou na morte de 600.000 pessoas. Os negros foram considerados os verdadeiros culpados do conflito, o que acirrou a violência praticada contra eles[6].

O ódio que se originou do fosso racial nos Estados Unidos implicou a formação de duas comunidades distintas, a partir da segregação institucionalizada, qual seja, incentivada e patrocinada por meio de políticas públicas e promovidas por meio de leis, de decisões administrativas e da jurisprudência. Por meio dela, os negros foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos, proibidos de ter propriedades, de viver em certas vizinhanças, de obter licenças para trabalhar em algumas profissões, de casar com brancos, de votarem, de testemunharem. Não podiam dirigir nas mesmas estradas, sentar nas mesmas salas de espera, usar os mesmos banheiros ou piscinas, comer nos mesmos restaurantes, ou assistir a peças nos mesmos teatros reservados aos brancos. Aos negros, era simplesmente vedado o acesso a parques, praias e hospitais[7].

Não podemos olvidar que o sistema segregacionista estadunidense foi não somente admitido, mas sobretudo fomentado com as decisões da Suprema Corte. Nesse sentido, mencione-se o famoso precedente Plessy v. Ferguson — 163 U.S 537 (1896), quando a Suprema Corte declarou a constitucionalidade do Estatuto da Lousiana de 1890, por meio do qual se determinava que o transporte em estradas de ferro deveria ser feito por acomodações iguais, mas separadas entre os brancos e os negros (a famosa máxima equal, but separated). Assim, seria perfeitamente constitucional que os negros fossem barrados, se porventura quisessem viajar nas áreas destinadas aos brancos, porque à época a idéia de igualdade não significava que brancos e negros pudessem dividir o mesmo espaço físico.

Observa-se, desse modo, que nos Estados Unidos a segregação não fora promovida apenas por organizações particulares, mas, espantosamente, foi incentivada pelo próprio Estado. Na medida em que o próprio governo institucionalizou a discriminação entre as raças, fez surgir no imaginário nacional a idéia de que a separação entre brancos e negros era legal e legítima, de que não era correto haver relações entre as raças, nem mesmo de cordialidade. Assim, despertou a consciência das pessoas para a diferença, em vez de procurar promover a igualdade.



Naquela sociedade, as modificações no sistema segregacionista surgiram somente após muita luta. As décadas de 1960 e de 1970 foram marcadas pelo auge do movimento negro organizado, com os líderes Martin Luther King e Malcolm X, e ainda as manifestações contínuas de diversas organizações[8]. Na esfera política, programas de combate à discriminação começaram a surgir, nos governos de Kennedy e Johnson[9], mas mesmo com tais medidas, a miscigenação entre negros e brancos permanecia verdadeiro anátema social.

No entanto, uma série de eventos principiou a mudança de direção das políticas públicas relativas aos negros. Observou-se que apenas proibir a discriminação não demonstrou ser suficiente[10]. Na década de 60, explodiram inúmeros eventos ligados aos conflitos raciais, difundindo o medo, o terror e a confusão na sociedade. A situação se agravava porque a polícia respondia com intensa brutalidade, o que acirrava ainda mais o caos social instalado. Para se ter uma idéia da magnitude da questão, o problema racial foi capa da Revista Time por três semanas consecutivas. Em 31 de julho de 1967, a capa do U.S News and World Report foi “Os Estados Unidos serão capazes de se auto-governarem?”. Destaque-se que as manifestações dos negros tornaram-se mais violentas a partir do assassinato, em 1968, do líder Martin Luther King, quando este organizava uma grandiosa manifestação contra a pobreza. Não fora coincidência o título escolhido para publicação, em 1968, do livro sobre a temática racial nos Estados Unidos, de Garry Wills — The Second Civil War: Arming for Armageddon[11].

Revista Consultor Jurídico, 10 de julho de 2007

Sobre o autor
Roberta Fragoso Menezes Kaufmann: é procuradora do Distrito Federal, professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo na Escola da Magistratura do DF e no Instituto de Direito Público. É autora do livro Ações Afirmativas à Brasileira: necessidade ou mito? Uma análise histórico-jurídico-comparativa do negro nos Estados Unidos da América e no Brasil, lançado pela Livraria dos Advogados.

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